Há arcabouço fiscal que resista?
 

A polêmica provocada pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 1/2022 no Senado me fez pensar sobre o crônico menosprezo no país por aspectos institucionais, em variadas instâncias, não somente políticas. Situo o leitor brevemente no contexto da discussão.

Em 30/6/2022, o Senado votou em dois turnos a PEC nº 1/2022, a qual determinou um conjunto de gastos para 2022 somando mais de R$ 41,2 bilhões. Há diferentes itens no pacote: transferências de renda para famílias pobres inscritas no Cadastro Único da assistência social; subsídios à gratuidade de idosos no transporte público; benefícios para caminhoneiros e taxistas; e compensação aos estados pela concessão de crédito presumido de ICMS à cadeia do etanol. Não pretendo discutir o mérito de cada item. Apenas destaco que foram necessários somente dois dias para o Senado emendar o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias com o intuito de incrementar gastos sem que os atores — Executivo, sobretudo — incorressem em riscos de responsabilização por violar normas de direito financeiro e eleitoral.

Todo o arcabouço fiscal do país — composto por dispositivos constitucionais, leis complementares, entre outros — foi expressamente afastado para que um dispêndio conjuntural pudesse acontecer. Aprovou-se uma PEC (a de nº 01/2022) para criar exceções à PEC anteriormente aprovada (a que originou a EC nº 95/2016 ou teto de gastos). É como se as restrições institucionais devessem subsistir até que começassem a restringir de fato; a partir de então, excetua-se. Não foi a primeira vez, não será a última.

Sintomaticamente, poder-se-ia dizer, o Brasil tem sido pródigo na criação de normas, incluídas normas fiscais. Especialistas apontam que, desde sua promulgação em 1988, o texto principal da Constituição saltou de 67 para 167 dispositivos no capítulo das finanças públicas. Há ainda o ADCT, o qual em breve receberá mais dispositivos caso a PEC nº 1/2022 seja aprovada, e dispositivos apartados no corpo das emendas. Discute-se muito o afã brasileiro de constitucionalizar: a Carta de 1988 trata de numerosos assuntos. Como parlamentar constituinte, pude observar o fenômeno. Para alguns, o esforço de tudo inscrever na CF/88 foi e é reflexo da busca de proteção por parte dos vários segmentos sociais: na falta de consensos suficientes decorrente de um conflito distributivo acentuado e não raro predatório, num quadro de brutais desigualdades, todos almejam um lugar constitucional. Mas se tudo se constitucionaliza, toda mudança requer alterações constitucionais. Lá se vão 128 emendas desde 1988. Outras duas já estão a caminho.

Existem numerosos conceitos na literatura das ciências sociais, desde os mais parcimoniosos, que definem instituições como regras formais, até outros mais abrangentes que incluem normas e valores culturais. Considerando o tema que motiva este artigo, chamo a atenção para a importância de certas funções institucionais. Instituições delimitam as ações possíveis dos vários atores, são as regras do jogo social ou político. Instituições criam incentivos ao recompensar e punir. Instituições facilitam, em maior ou menor grau, para os diversos atores, projetar, em horizontes variados, os resultados possíveis de suas decisões. Instituições mitigam ou ampliam riscos.

A ideia de governança, tão em voga em múltiplas esferas, tem um caráter institucional. Nos termos do Ifac (International Federation of Accountants), por exemplo, governança diz respeito ao conjunto de arranjos institucionais que objetivam assegurar que os resultados esperados pelas diferentes partes interessadas (stakeholders) de uma organização sejam definidos e alcançados. No campo da política fiscal, o recente debate opondo padrões de governança a regras fiscais numéricas tem como pano de fundo uma questão institucional: que conjunto de instituições fiscais melhor promovem o equilíbrio intertemporal das contas públicas, além de otimizar aspectos de eficiência e equidade do gasto? Na arena eleitoral, diferentes conjuntos de regras favorecem maior ou menor representatividade ou governabilidade.

Instituições, portanto, não são irrelevantes. Novas regras tendem a promover novos resultados. Ao transigir com instituições, podem-se comprometer objetivos, ainda que não imediatamente. Pense-se agora no grande marco institucional que é uma Constituição, na qual aspectos fundamentais de uma sociedade como direitos individuais, arquitetura do aparato estatal, regras de competição política, entre outros, são estabelecidos. Quais são as consequências de submetê-la a mudanças circunstanciais?

Algo paradoxal, o Brasil parece apostar em reformas institucionais mesmo com sua disposição a subverter normas com muita presteza. O arcabouço fiscal, como mencionado, é um caso evidente. Em 1998, inserimos na Constituição um teto remuneratório do serviço público. Desde então, foi inventado um sem-número de manobras para burlá-lo. Cada tentativa de tapar furos no teto é seguida de novos artifícios, num ciclo interminável. A Lei de Responsabilidade Fiscal, pela extensão e magnitude das mudanças trazidas, tinha um imenso potencial de introduzir novos padrões e comportamentos na gestão pública. Fato é, no entanto, que crises fiscais abalaram os vários entes federativos desde então e, em 2016, decidiu-se que um teto de gastos deveria ser imposto à União. Esse teto, por sua vez, já sofreu mudanças para atender a necessidades do governo de ocasião. A PEC nº 1/2022 é apenas a bola da vez. Já se espera que o governo a ser empossado em 2023 venha a instituir novo regime fiscal.

Ao fim, pergunto-me se existem arranjos institucionais que prescindam da qualidade dos atores. Se quase todos se prestam a votar contra o arcabouço fiscal do país, há arcabouço que resista?

José Serra é senador (PSDB-SP), ex-governador de Estado, ex-prefeito de São Paulo, ex-ministro das Relações Exteriores, da Saúde e do Planejamento, ex-deputado, ex-secretário da Fazenda de Estado, professor, economista e engenheiro civil.

 

Fonte: José Serra


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